Transtorno alimentar: relato real de quem luta contra a balança
A luta contra a balança é só o começo do sofrimento de quem tem um transtorno alimentar. São incontáveis os prejuízos na saúde física, emocional e no convívio social da pessoa. Leia mais!
Percebo que grande parte das pessoas não pensa em transtorno alimentar como algo que requer um tratamento sério, tampouco consideram os riscos de que o problema exista quando a pessoa em questão não tem uma aparência cadavérica. Decidi escrever minha experiência com objetivo de alertar.
Transtorno alimentar é, sim, uma doença grave, vai muito além de um comportamento adolescente passageiro. Eu nunca fui uma adolescente gorda, mas estava longe de me sentir à vontade com meu corpo quando via minhas amigas trocando de roupa ou precisava usar biquíni nas idas à praia. Mesmo me sentindo descontente com meu peso (que estava dentro da normalidade), hoje percebo o quanto eu lidava bem com ele, se comparado aos anos do início da minha vida adulta, repleta de sofrimento e prejuízos.
Aos 18 anos consegui meu primeiro emprego como vendedora em uma loja de roupas, e naquela época eu usava manequim 40. Era a primeira vez que eu tinha contato com pessoas fora do meu núcleo de conhecidos habitual e fiquei deslumbrada com a gerente da loja em que fui trabalhar.
A Érica era uma mulher de quase 30 anos, alta, mestiça, olhos esverdeados, cabelos lisos e compridos, dignos de um comercial de shampoo. Sua maquiagem parecia feita por um maquiador profissional, e quando saíamos para almoçar eu percebia os olhares de homens e mulheres que ela recebia por sua beleza. Essa admiração e inspiração, a busca por me achar tão bonita quanto a Érica, me levou a 7 anos na luta contra a balança e com o transtorno alimentar.
Conforme aprofundávamos a amizade, Érica me contou tudo sobre as medicações que tomava há anos para emagrecer, tudo sem prescrição médica. Me explicou onde as conseguia, já que eram remédios restritos a obesidade e controlados. Eu, que sempre havia aprendido severamente com minha mãe que remédios para emagrecer eram um perigo, comecei a rever meus conceitos.
Como alguém tão bonita e bem-sucedida poderia usar algo que fizesse tão mal como minha mãe falava?
Pouco depois comecei a tomar remédios de emagrecimento altamente restritos e prejudiciais. Foi impossível não ficar deslumbrada, já que em pouco tempo meu manequim 40 diminuiu para 38.
Um dos remédios me fez muito mal: tive quase todos os efeitos colaterais, dentre eles desmaio, taquicardia, urticária e falta de ar; ainda assim não foi razão para eu desistir. Logo logo encontrei um medicamento similar, que meu corpo aceitou melhor.
Todos os falsos benefícios…
Além da perda de peso, fui percebendo que os remédios me ajudavam com outras coisas. Na época, eu fazia faculdade e eles me deixavam disposta e enérgica. Comer havia deixado de ser uma necessidade, o que era ótimo para alguém com tempo apertado.
Emagrecer começou a fazer parte de todos os meus pensamentos, e não demorou muito para minha vida se resumir à meta de perder 10kg. Pouco tempo depois, eu estava usando manequim 36 e as blusas tamanho P ficavam folgadas. Eu passava muito tempo em jejum e estava tão entusiasmada com minha aparência que comia apenas bolachas água e sal ao longo de uma jornada exaustiva; e só fazia isso para não passar vergonha com o barulho de meu estômago roncando.
Fiquei tão deslumbrada que comecei a usar todos os recursos que pudessem me fazer emagrecer. Eu usava, por exemplo, laxantes em jejum, dia sim e dia não, para acordar mais magra.
Demorou uns 12 meses nesse ritmo para me sentir absolutamente feliz ao perceber que recebia os mesmos olhares que a Érica recebia. Porém, um fato que eu devia ter me atentado na época e não dei atenção, por estar contente demais com meu corpo, é que as calças manequim 36 também estavam começando a ficar folgadas, e buscar manequins menores começou a ser um problema.
Me ocorreu de que algo poderia estar errado quando em uma loja de calças jeans a numeração adulta mais baixa (34) ficou folgada. Cheguei a pensar que algo poderia estar passando dos limites, mas nada se tornava mais importante do que perder 10 kg, mesmo que eu já os tivesse perdido há algum tempo.
Aí vem aquela ideia frequente sobre transtorno alimentar: se a pessoa está tão doente, por que ela simplesmente não come? É tão fácil comer.
Pois é, a verdade sobre o transtorno alimentar é outra, é algo ilógico e é muito mais forte do que você é capaz controlar.
Eu queria perder 10 kg e mesmo depois de ter perdido 10 kg eu continuava querendo perder exatamente 10 kg.
Você fica tão obcecada, que seu senso crítico fica afetado. Por mais que escute que está magra demais, ou que você não tem 10 kg para perder, a meta não muda, e comer passa a te dar medo…
Quanto menos você come, menos você quer comer, e, pelo menos no meu caso, o que eu percebi foi que, embora meu corpo estivesse absolutamente desnutrido, as medicações agiam de uma maneira que não me permitia sentir fome. Às vezes, só de me imaginar mastigando, eu já ficava enjoada. Minhas colegas da faculdade começaram a estranhar quando eu não aceitava mais passar o intervalo na cantina, porque só de olhar para a vitrine de salgados eu ficava com ânsia de vômito. Só de me expor àquela vitrine parecia que estava fazendo algo de ruim com meu corpo.
Eu fiquei bem doente
Tive anemia profunda, queda de cabelos, problemas no humor, depressão e comecei a beber todos os dias uma dose de whisky ao perceber que o álcool anestesiava os efeitos colaterais da desnutrição. Nem preciso dizer que isso me gerou ainda mais problemas de saúde.
Em um desses jejuns malucos que duravam dias e mais dias, eu misturei álcool com remédio e passei muito mal. Quando fui vomitar, como não comia nada há vários dias, minha pressão caiu a ponto de me deitar na calçada de um bar, sentindo que meu corpo não respondia mais aos meus comandos para levantar.
Nessa noite, minha mãe me buscou e pensou em me internar, principalmente devido ao fato de naquele dia ter visto uma notícia de farmacêuticos presos por venda ilegal de medicamentos para emagrecimento que foram responsáveis pela morte de algumas pessoas. Mas logo consegui tranquilizar minha mãe de que eu sabia exatamente o que estava fazendo e que estava fora de perigo.
Por incrível que pareça, a convicção de tamanho absurdo foi tanta que não fui internada, tampouco o que aconteceu comigo foi impedimento para continuar usando medicações, laxantes e fazendo jejuns prolongados.
Imagino que minha mãe não levou aquilo a sério simplesmente pelo fato de eu não ter a aparência das mulheres que costumam aparecer nas campanhas sobre anorexia e bulimia. A verdade é que você não precisa estar naquele estado para estar doente. Essa visão precisa mudar! Tudo poderia ter sido diferente se minha mãe não tivesse me ouvido naquele dia.
Engolir era algo muito violento…
Além de deixar de comer, comer na frente de alguém se tornou algo inadmissível. Isso provocou o fim de pelo menos 3 relacionamentos: meus namorados não conseguiam entender que eu não era o tipo de pessoa que eles poderiam levar à pizzaria num sábado à noite, pelo simples fato de precisar cuspir qualquer bocado de comida. Engolir era algo muito violento para mim.
Já haviam passado pelo menos 3 anos desde que tudo havia começado, quando conheci a Érica. O que a maioria das pessoas não pensa sobre o transtorno alimentar, quando acredita que se trata apenas de um comportamento adolescente, é que a alimentação é um combustível básico para o funcionamento do corpo, e privá-lo desse combustível leva a muitas complicações.
Além da anemia e problemas gástricos, desenvolvi depressão e recebi suporte profissional adequado e atenção dos familiares apenas quando sobrevivi a uma tentativa de suicídio.
Demorou alguns anos para eu me recuperar, e confesso que, ainda hoje, sinto um pouquinho de desconforto de comer em público, mas como. Peso 20 kg a mais do que o peso mais baixo que atingi naquela época e a diferença é que hoje, mesmo pesando 20 kg a mais, não sinto que preciso perder 10kg.
Relato real de Josielly (nome ficitício)
Algumas considerações sobre transtornos alimentares
Os transtornos alimentares, sejam anorexia, bulimia ou compulsão alimentar, oferecem inúmeros riscos à saúde física e mental. Na saúde física, aumentam-se as chances de quadros de úlcera, gastrite, anemia, complicações cardiovasculares e insônia. Na saúde mental, há o favorecimento do desenvolvimento de quadros de ansiedade e depressão, e os riscos de suicídio aumentam consideravelmente.
O transtorno requer tratamento e indica-se o acompanhamento multidisciplinar: clínico, nutricionista, psiquiatra e psicólogo. Quando feito ainda nas primeiras manifestações dos sintomas, o tratamento reduz drasticamente as complicações mencionadas, favorecendo o prognóstico.
Vale ressaltar que pessoas que sofrem de bulimia tendem a estar dentro, e até mesmo acima, do peso indicado para a sua altura e estrutura óssea. Outra questão importante é conscientizar sobre os recursos compensatórios para a perda de peso: não se restringem apenas a medicamentos ou uso de laxantes, mas também a comportamentos “socialmente aceitos”, como a prática intensa de exercícios físicos sem alimentação adequada para a queima calórica.
Exercícios físicos quando praticados dessa maneira podem ser tão prejudiciais quanto as demais práticas compensatórias de bulimia e anorexia, e ainda oferecem riscos de desgaste das articulações e exaustão.
Não deixe de procurar ajuda ou incentivar alguém que você acredita que sofra de transtornos alimentares a fazê-lo. Os transtornos alimentares atingem principalmente mulheres, e em menor escala atinge os homens, costumando manifestar-se na adolescência ou início da vida adulta.
Fonte: Disponível em https://br.mundopsicologos.com/artigos/transtorno-alimentar-relato-real-de-quem-luta-contra-a-balanca